conto,  página187

cabeças vazias na escada rolante sempre voltam para o térreo

  Quando peguei minha cabeça e coloquei na sacola, certamente não sabia onde estava indo. A visão fosca dentro do plástico era um nada. Gritei, bradei, me esgoelei; mas tava sem voz. O pescoço estava no corpo, cordas vocais no corpo, a porra das cordas vocais tinham ficado no corpo. E grito sem voz é vácuo, vazio e inócuo.

  Pensei em escrever algo, mas eu tinha os olhos e o pensamento, ele tinha as mãos. Quis assoviar para chamar a atenção, mas mais uma vez, em vão. Como ele iria escutar se o ouvido tava comigo? Então me veio a primeira reflexão: Eu controlo o que ele tem. Os braços, as pernas, o esfíncter. Mas eu fora dele?! A gente é ninguém.

  Chegar ao elevador foi um caminho de bate-bate. Impossível coordenar o corpo com o nariz espremido no fundo da sacola. Se já não via nada, ainda por cima, esse nada era o chão. Tudo gira, sacode, tromba, enrosca. O mundo se torna abafado, surdo e calamitoso. Paramos. 

  [Plimmm]

  Corpos ouriçados ao sinal sonoro. Sacolas e cabeças batendo, todos querem entrar. A situação pede controle, mas se controlar dando cabeçada é incontrolável.

  A porta do elevador abre, e graças a Adão Lattorre, o ascensorista é um peixe. Não tem pescoço, e consequentemente, sua cabeça continua presa ao corpo. E o ser “despescoçado” borbulha espaços de ar explodindo sons: “Cabeças”, “tem”, “que”, “ir”, “de escada”, “rolante”.

  Outro alvoroço, cabeças rolam ensacoladas. Aos cabeças-duras que insistem em entrar no elevador, a cauda recua e a lambada vem. Lá se vai mais um miolo quicando.

  Rolei sacola afora; e entre ponta-pés, galos, pisões e hematomas, por fim parei defronte ao elevador. A porta fechou. O aparelho subiu e meu corpo continuava ali, batendo na parede. Coitado. Batia, voltava e batia de novo. Aquilo doía em mim.

  Traze-lo de volta até foi fácil, mas aí entrei na segunda reflexão: Quem é esse mim? Ele, eu ou nós? Quando falo ele é o corpo, quando falo eu é a cabeça, sou eu. Ele me carregando posso falar nós. Mas fora dele não posso falar mim. Sou sem mim. 

  Pronto, quando ele se agachou para me pegar o pé chegou antes da mão, tomei aquela bica. Sai rolando pelo saguão. Não teve jeito, fiz ele correr, mas rodava tanto que perdi a cabeça. E ele correu e chutou de novo, e de novo, e a cada novo ponta pé eu perdia o prumo.

  Tentei respirar, acalmar o ânimo. E me veio a terceira reflexão: com a cabeça fora do corpo não dá para respirar. A gente ofega.

  Em uma última tentativa consegui me estabilizar. Meio inclinada, o nariz grudado no chão, a boca torta e o olho esguiando ao máximo para ver algo. Situação bem difícil de manter o equilíbrio. Via um corrimão rodando e algo que roçava a minha nuca. Concentrei, aprumei e o orientei calmamente na minha direção. Tinha tudo sob controle e optei pela solução mais simples. Ao invés da mão, o pé. Ele me empurrou para o primeiro degrau e seguimos nós escada rolante acima.

Sufoco é pouco,

mas a vida é assim.

As vezes demora,

mas se encontra um fim.

  No degrau logo acima do meu um corpo de mãe de mãos dadas com um corpo de criança. O corpo menor segurando a sua atrevida cabeça virada para trás. Ela mostrava a língua e ria, fazia careta e ria, eu ria junto, não tinha mais nada mesmo a se fazer ali, pelo menos distraia. E fomos nos destinando um andar acima.

  A criança saiu de salto da máquina que sobe e rola. Pulou dois degraus para frente e parou do lado de fora. A cabeça miúda me observando com um sorriso encapetado de quem tem absoluta certeza da sua isenção. Tudo ficou mais lento. Eu chegando, a criança fazendo careta e seu corpo virando. Eu chegando, a cabeça da criança virando pra frente. Eu chegando, seu pé se armando. Eu chegando e “pau!”. Só deu tempo de ver a última careta e lá estava eu, rolando a escada rolante. Degrau por degrau, tudo que cresci desci em um chute.

  Parei no saguão, frente à escada rolante. Meu corpo descia, caia e subia, descia, caia e subia e assim a vida seguiu. Um dia depois do outro a vida continuou; caindo, descendo e subindo. E nesse estado de desce e sobe deu tempo para perceber muita coisa. Deu tempo de ver e olhar esse corpo habitado em mim. Deu tanto tempo, de tanta coisa, que enfim cheguei à derradeira reflexão:

“Na próxima vida quero ser peixe, e se a confusão em mim florescer?! O que há de se fazer? Nada.”

Sobre o Autor

MCestari
MCestariMarcos Cestari é um quase geólogo graduado em Propaganda e Marketing concluindo a graduação EAD em Letras português/inglês. Palhaço ou Clown, artista de rua, poeta, escritor. Autor do romance Cadafalso Despertar, autopublicação que pode ser comprada aqui no site, na aba /Loja Ladra Livros. [Uma cabeça que pensa, uma cabeça que cria, uma cabeça que é pensa, uma cabeça que é minha]

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